Aline Midlej é apresentadora do Jornal das Dez, na
19/02/2022
A escuridão está insuportável
Os passos apressados pensavam na distância que ia se ampliando entre meu corpo, vivo, em alerta, e os que ainda poderiam estar sob os escombros do que antes era casa, abrigo. Minutos antes um pai passou por mim, gritando o nome do filho que, segundo ele, estava em algum ponto embaixo daquela lama que nos cercava. Não fazia muito tempo havia conhecido Thais, uma jovem mãe que buscava pela filha e o marido. Entre uma entrada ao vivo e outra, corpos eram retirados pelos poucos socorristas que ainda cavavam a lama depois de mais de 24 horas de trabalho. Numa contagem mórbida, era preciso seguir falando a vida, do valor daquelas vidas, do direto à vida.
A cada respiração truncada durante a transmissão ao vivo, o que me ajudava era lembrar de pessoas como Viviane. Nos cruzamos na minha chegada, horas antes. Moradora de um bairro vizinho, ela carregava uma garrafa térmica com café quente, algumas garrafas d’água para os bombeiros esgotados, mas incansáveis até ali. A solidariedade só não era maior que a dor e a incompreensão. Quando mais alto se subia, mais lama, escuridão e sofrimento. Gritos cansados rompiam o silêncio da falta de esperança. O ronco das motos era sinal de quentinhas doadas chegando para alimentar os que buscavam vida onde se se via destruição. Não encontrava adjetivos pra descrever os abismos sentimentais. Apelei à intuição de quem realmente sentia. Eu sentia e reconheci da forma mais brutal, naquela noite, o que sempre ouvi sobre pais não poderem enterrar seus filhos. A forma mais brutal é um pai cavando o corpo do próprio filho. Sem luz. Não havia luz, nem fora, nem dentro daquele pai.
“Todos ficaremos no escuro se a sociedade não se unir, contra a grande crise que ataca o país. Só assim, neste Brasil escuro, teremos luz. O Brasil tem que se ligar”, disse Arnaldo Jabor em uma de suas crônicas televisivas mais célebres. O ano era 1999. Petrópolis ainda viveria a tragédia de 2011 – quando mais de 900 pessoas morreram na mesma região em função dos temporais – e agora, o passado revivido, ao vivo. Quando escrevia essas linhas, os mortos já era 136 e os desparecidos mais de 200. Gostaria de ouvir Jabor sobre as tragédias sempre anunciadas e sempre com precedentes. A escuridão está insuportável.
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