Questionamentos sobre moralidade de determinados penduricalhos pagos a magistrados são comuns. Mas, também existem dúvidas a respeito da legalidade de pelo menos um deles. Uma denúncia apresentada por um servidor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não só pede o fim do pagamento retroativo da licença-prêmio, mas cobra a devolução dos cerca de R$ 300 milhões que os juízes e desembargadores teriam recebido ilegalmente desde 2015.
Esta licença-prêmio, que é somente mais um de tantos penduricalhos dos magistrados, foi extinta para os servidores públicos “comuns” pela reforma administrativa do governo FHC, em 1997.
Recriada pelo TJMS em julho de 2014, ela prevê férias extras de três meses após cada cinco anos de assíduo trabalho. Mas, como juízes já tem férias de 60 dias por ano e não estão interessados em mais folgas, eles convertem em indenização pecuniária estes três meses de férias extraordinárias.
Quer dizer, vendem os 90 dias de licença e embolsam, em valores atuais, algo em torno de R$ 200 mil a cada cinco anos, já que, além do salário-base (R$ 39 mil no caso dos desembargadores) eles incluem também boa parte dos penduricalhos neste cálculo, conforme o advogado Enio Martins Murad, que advoga para o autor da denúncia encaminhada ao CNJ.
Esta denúncia, com pedido de liminar para suspensão dos pagamentos e devolução com juros e correção de tudo aquilo que os juízes da ativa e os aposentados estão recebendo, foi reencaminhada ao CNJ em novembro do ano passado pelo analista Judiciário Joel de Carvalho Moreira, que é servidor do Judiciário estadual faz 36 anos.
Ele já havia feito reclamação semelhante em agosto de 2019, mas a ação foi arquivada quatro anos depois, em agosto de 2023, pelo corregedor do CNJ, o ministro Luis Felipe Salomão, que não levou o caso para apreciação dos demais integrantes do Conselho.
E, pelo fato de a denúncia ter sido arquivada sem o que ele considera o devido debate, resolveu fazer um novo apelo, desta vez endereçado ao ministro do STF, Luis Roberto Barroso, que também preside o CNJ. Este tipo de tema, alega Joel de Carvalho em sua denúncia, necessariamente precisa ser levado ao plenário do Conselho.
O principal argumento do servidor é de que esta licença-prêmio está sendo paga sem base legal, principalmente no que se refere à retroatividade. De acordo com a denúncia, todos os magistrados receberam a licença-prêmio retroativa ao dia da posse, limitado a 1979, data da criação do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.
Prova disso é que “desde 2014 os servidores mais antigos do TJMS requerem ao mesmo o pagamento da licença-prêmio retroativa à data de suas respectivas posses pelo princípio da isonomia com os magistrados e as diversas administrações do TJMS indeferem o pedido dos servidores sob a alegação de que vige no ordenamento jurídico pátrio o princípio da IRRETROATIVIDADE da lei”, escreve.
“Realmente a regra geral é pela irretroatividade, mas o TJMS pagou a licença-prêmio a todos os magistrados retroativamente à data da posse de cada um e nega o mesmo direito aos servidores. O ordenamento jurídico é um só para todos os cidadãos. Não existe um ordenamento jurídico só para juízes/magistrados. A lei que recriou a licença-prêmio dos servidores é a mesma que criou o mesmo benefício aos magistrados (Lei 4553/2014) e ela não manda retroagir”, continua o texto da denúncia.
Conforme ele, em 1997 “aproximadamente 60 magistrados do TJMS divididos em 04 grupos, ajuizaram ações ordinárias de cobrança contra o Estado de Mato Grosso do Sul para receberem licença-prêmio retroativa a data da posse de cada magistrado”. Porém, perderam a disputa tanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto no Supremo Tribunal Federal (STF).
Depois disso, fizeram outras tentativas e em 2014 finalmente aprovaram na Assembleia Legislativa uma lei criando o pagamento, ao qual nunca haviam tido direito.
Caso tivessem seguido o rito normal, o direito ao primeiro pagamento ou folga extra de três meses teria sido conquistada cinco anos depois, em julho de 2019.
“Lei serve para prever o futuro, não para normatizar o passado. Isso qualquer acadêmico de direito aprende no primeiro semestre da faculdade, mas o nosso Tribunal de Justiça é um dos raros estados do País que está fazendo essa loucura de pagar retroativamente”, explica o advogado Enio Murad.
Na ação protocolada no CNJ, o analista Judiciário anexou uma tabela especificando o valor exato que cada juiz havia embolsado até 2020. O máximo, até aquela época, era R$ 831.861,40.
Mas, na ação enviada ao CNJ em novembro passado, ele deixa claro que esse montante já é bem maior. “O Des. XXX tomou posse em maio de 1981 e recebeu sua licença-prêmio retroagindo a essa data, tendo recebido cerca de R$ 1,5 milhão”, descreve a denúncia. (o nome do desembargador foi excluído pela reportagem).
E assim como ele, os demais magistrado receberam valores semelhantes, dependendo do tempo em que estão no serviço público. Eles averbaram, inclusive, o tempo de serviço em outras funções para aumentar indenização, conforme Enio Murad. A licença está sendo paga parceladamente, inclusive a aposentados e pensinistas. Desembargadores que são procedentes da OAB não estão fazendo juz a esse privilégio.
AÇÃO POPULAR
Além da denúncia no CNJ, o analista judiciário Joel de Carvalho Moreira, que já foi diretor do sindicato dos servidores do Judiciário, é autor de uma ação popular que pede o fim do pagamento da licença-prêmio.
Inicialmente ele protocolou a ação no STF. Porém, o caso foi enviado de volta pelo ex-ministro Marco Aurélio de Melo para o judiciário local. Desde janeiro de 2021 ela tramita em Campo Grande, mas seis juízes já se declararam suspeitos para julgar o caso, já que estão diretamente envolvidos no tema.
Atualmente a ação está suspensa. Segundo o advogado Enio Murad, a suspensão ocorreu porque o ministro do Alexandre de Moraes, do STF, mandou suspender todas as ações que envolvem o pagamento de licença-prêmio no País.
Segundo o advogado, o que o ministro determinou foi a suspensão dos pagamentos, mas o que o TJ daqui fez foi a suspensão da ação judicial, mantendo normalmente as indenizações aos magistrados.
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