Em 2006, nos cafundós do Piauí, tive a infelicidade de perguntar ao filho adolescente de uma beneficiária do Bolsa Família quantas vezes por semana eles conseguiam comer alguma proteína. "Não sei o que é isso", foi a resposta.
"Carne. Vocês comem carne?" Ao que respondeu: "De vez em quando a gente acerta um passarinho".
A maior promessa de Dilma Rousseff como presidente é erradicar a pobreza. De propósito ou não, ela usou o termo "miséria" ao fazê-lo.
Especialistas no assunto e o próprio MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), responsável pelo Bolsa Família, usam os termos "pobre" e "indigente".
Assim, é pobre e elegível ao Bolsa Família grupos familiares com renda mensal per capita inferior a R$ 140. Se uma família de quatro pessoas vive com R$ 400 ela é pobre (precisaria de R$ 560 ou mais para deixar essa classificação).
Já os indigentes são os que têm renda familiar per capita mensal abaixo de R$ 70.
Os valores são ridículos. Equivalem a R$ 4,60 por dia (um maço de Malrboro para o pobre) e R$ 2,30 (menos que uma passagem de ônibus em SP para o indigente).
O MDS reconhece que o ideal seria usar o valor do salário mínimo como referência. Assim, uma família de quatro pessoas deixaria de ser pobre quando recebesse (via rendimentos do trabalho e/ou benefícios sociais) R$ 2.040,00, ou R$ 510 por cabeça.
A meta de Dilma com a atual definição de pobreza (abaixo dos R$ 140) é factível e não custaria tanto.
Vista de maneira mais honesta, porém, não seria nada sensacional. Virariam "ex-pobres" os que passassem a viver com os R$ 4,60 ou mais ao dia.
Segundo cálculos do Centro de Políticas Sociais da FGV, o Brasil teria de investir mais R$ 21,3 bilhões ao ano (em cima dos R$ 13,4 bilhões do Bolsa Família) para atingir esse objetivo.
Somados, os quase R$ 35 bilhões corresponderiam a apenas 1% do PIB e chegariam a mais de 80 milhões de pessoas.
Como comparação, nos primeiros oito meses de 2010 o governo separou R$ 50 bilhões para pagar juros de sua dívida. Proporcionalmente, os que receberam em juros esses R$ 50 bilhões são um grão de brasileiros diante de um mar de conterrâneos pobres.
O pescador Flavio de Mesquita com mulher e filhos em Porto de Pedras (AL), um dos locais mais pobres do país
O quadro abaixo mostra que o total de pobres e indigentes no Brasil caiu à metade nos últimos dez anos. E mostra onde eles ainda se concentram.
A partir de 2003, mais de dois terços (71%) da redução de pobres se deu porque o mercado de trabalho melhorou. Foram quase 14 milhões de novos empregos formais sob Lula.
Até 2008, para cada 1 ponto de crescimento do PIB, a ocupação também crescia 1 ponto. Hoje, essa proporção caiu quase à metade, pois houve ganhos de produtividade (um mesmo número de trabalhadores passou a produzir mais).
Assim, é de se esperar que o governo Dilma invista mais dinheiro público na área social se quiser mesmo erradicar a pobreza.
Outra questão, nada trivial, é se Dilma se contentará com o atual critério, equivalente ao Malrboro e à passagem de ônibus por dia.
Isso quem deve nos dizer é Dilma. E sua consciência. * Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha.com.
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